por Lucas Oliveira, psicanalista
Texto lido no evento “Um papo incômodo”, com psicanalistas amefricanas, realizado no dia 03 de junho, em Porto Alegre.
Fico muito contente de estar aqui com vocês depois de tanto tempo. Feliz de ter Marcela conosco após mais de 2 anos. E feliz com o quanto a instituição se transformou nesse meio tempo. É a primeira vez que promovemos um encontro presencial já com esse desafio da construção de uma psicanálise amefricana.
O primeiro evento oficial dessa construção foi promovido pelos próprios integrantes do seminário de especialização. Não poderia ser diferente. O que estamos fazendo aqui hoje depende, fundamentalmente, de quem está ao nosso lado. Espero que em nossos próximos eventos, assim como ocorrem em nossos seminários, possamos estar repletos de toda diversidade que o Brasil tem para nos mostrar.
Praticamente todas as formas de opressão, discriminação e preconceito estão alicerçados em cima de um discurso naturalizante a respeito dos modos de estar no mundo. A manutenção das formas de exclusão baseada em opressões é justificada ou por um prisma fundamentalista religioso ou por uma naturalização. E, muitas vezes, essas duas formas se misturam. Está na hora de tirarmos dos diques da repressão os processos complexos dessas naturalizações que deixam “cada um no seu lugar”.
Por mais que muita coisa já se possa viver de uma outra forma e que cada vez mais a singularidade da améfrica possa ocupar um lugar no mundo, parece que só se for de certa forma, mais ou menos civilizada. Está na hora de parar de reprimir a multiplicidade perverso-polimorfa inerente ao desejo humano no inferno da regressão pré-genital. Parar de reprimir o discurso racista atrás de uma democracia racial. Parar de reprimir a importância dos lugares simbólicos e da construção da língua pretoguesa.
Ainda hoje há uma espécie de proteção sagrada a um português que tenta, tenta, tenta não ser transformado pelas outras tantas línguas que nos constitui como sujeitos amefricanos. Tenta, tenta, tenta, mas essa tentativa sempre é farsa.
Recentemente tivemos, pela primeira vez em uma prova nacional, o pajubá. Um uso linguístico feito pela população LGBTQIA+ que tem sua origem no iorubá. Surgiram diversas críticas a essa questão do ENEM e tentaram “abafar”, forçar a não aparecer. E isso fizeram com toda a cultura que teve sua origem nos povos africanos e indígenas. Há uma norma de não mexer do português. Mas ela sempre falha, sempre tropeça, como toda norma. Somos constituídos por um discurso da branquitude e da cisheteronormatividade, mas ainda assim nossas heranças culturais permanecem vivas e potentes.
Lembro de escutar um psicanalista argentino que vive no Brasil há muitos anos. Segundo ele, trocar de língua é também trocar de sintomas. E essa é a aposta da psicanálise amefricana. Se o inconsciente é estruturado como linguagem e o Eu não é senhor de sua própria casa… O resultado é que atrás dessa imensidade de normatizações naturalizadas estão complexos processos que fazem com que, na consciência, sintamos como naturais e biológicos esse discurso da branquitude e da cisheteronormatividade. Não o são.
O eu é um amontoado de identificações. Ele carrega em si uma obviedade nada óbvia de um ser. Eu sou… Esse ser traz consigo uma ilusão, impregnada de naturalizações. Contudo o que se naturaliza é um lugar de poder e um lugar de exclusão. Ora… muitas pessoas por aí são contra ações afirmativas. De certo acham que é natural que pessoas trans tenham sua expectativa de vida de 35 anos e que não estejam inseridas tanto na tradição simbólica quanto em qualquer mercado de trabalho por aí. Deve ser natural, deve estar no sangue delas que morram cedo. A prostituição deve estar no sangue das travestis.
O consciente exclui o que a memória inclui. A consciência e o Eu são efeitos de um Discurso em uma dada cultura. E esse discurso falha na consciência e é por essas falhas que a memória se impõe. É através das mancadas, dos atos falhos, e da transmissão que um outro discurso permanece vivo em nossa sociedade.
A torção do português para o pretoguês, proposta por Lélia Gonzalez, é uma tentativa de desnaturalizar, de produzir outros modos de falar e consequentemente de estar no mundo. Pretoguês, pajubá e o tanto de outras línguas e usos linguísticos, que existem no Brasil. E essas línguas precisam ser ouvidas em toda sua potência, e ouvir essas línguas é ouvir esses lugares simbólicos denegados. Falar essas línguas é produzir um novo modo de estar no mundo.
Essas línguas… não é que elas não existam… Elas continuam insistindo, se metendo e transformando a língua normativa. Apenas não são reconhecidas como tradição simbólica. É jogada na lata de lixo essa referência. O reconhecimento do pretoguês, em toda a sociedade brasileira, carrega em si uma práxis que pode transformar o discurso do mestre, que se impõe como borracha tentando apagar tudo o que não é idêntico a si mesmo.
Ler outros mitos é nosso interesse principal. Esses outros mitos carregam em si toda essa insurgência de novas línguas, de modos de falar. Se o sujeito do inconsciente se constitui a partir dos discursos, novos modos de falar é novos modos de performar, de estar no mundo.
São mitos que tentaram jogar na lata de lixo. Mas olha que interessante… Pensamos que quando jogamos no lixo alguma coisa, ela desaparece, some… a excluímos de nossas vidas. Mas sabemos que não é bem assim. Eles continuam em nosso território, re-existindo em cada encruzilhada, produzindo efeitos e outras formas de falar. De viver.
É por isso que que é tão importante demarcar nosso campo de estudo pela não naturalização e não essencialização de qualquer coisa que seja do sujeito que fala. Entender a pulsão como não naturalizada é entender que ali onde um significante representa um sujeito para outro significante que a sexualidade toma forma. Não é natural que mulheres negras não sejam desejadas como objeto de amor para um matrimônio monogâmico. Não é natural que mulheres trans sejam colocadas num lugar de exoticidade que faz com que não possam nem transar com homens cis sem que esses homens percam sua heterossexualidade. Não é natural que homens embranquecidos cis gays não se atraiam por homens enegrecidos ou homens afeminados.
Se presentifica como natural, mas não o é. É apenas mais uma das ilusões como essa que continuamos acreditando – o sol gira em torno da terra. A solidão da mulher negra, a objetificação do corpo negro. O não amor aos gays afeminados. São temas que passam pela desnaturalização dos modos de estar no mundo. São tema que passam pelos lugares simbólicos constituídos para cada sujeita. A psicanálise amefricana vem para quebrar o mito da naturalidade dos lugares no mundo e dar espaço para outros mitos e outras línguas que nos constituam como outros sujeitos.