O Supereu[ropeu], por Evandro Machado Luciano

                                                   De repente é desbundante perceber que o discurso da consciência, o discurso do poder                                     dominante, quer fazer a gente acreditar que a gente é tudo brasileiro, e de ascendência europeia, muito civilizado etc. e tal (L. Gonzalez. “Racismo e Sexismo na cultura brasileira).

O sentimento de culpa normal, consciente (a consciência moral), não oferece dificuldades à interpretação, baseia-se na tensão entre o Eu e o Ideal do Eu, expressa uma condenação do Eu por sua instância crítica. Os conhecidos sentimentos de inferioridade dos neuróticos não se achariam distantes dele. […] O Ideal do Eu exibe uma severidade especial, muitas vezes enfurecendo-se com o Eu de forma cruel (S. Freud. “O Eu e o Isso”).

Em “O Eu e o Isso”, Freud analisa e especula sobre a formação das instâncias psíquicas pela perspectiva ontogenética (singular) e filogenética (histórica). Pretendo, aqui, discutir um destes pontos: a proposta interpretativa de Freud quanto à constituição do Supereu como instância da moralidade e internalização de padrões socioculturais que pressionam o eu, ante às pulsões do isso. Objetivo demonstrar minha hipótese de que o supereu, por ser uma instância construída também a partir das relações entre o sujeito e as instituições, não pode ser pensado fora dos aspectos colonizadores que fundaram a modernidade.

Freud define o supereu[1] como resultante do complexo de Édipo. De acordo com o psicanalista, tanto por uma perspectiva singular do sujeito quanto pela ficção da horda primitiva, o supereu se constitui por identificação com aqueles que desempenham as funções materna e paterna, o que ele chamou de “identificação primária”. No entanto, apenas esta identificação não é suficiente para construir uma parte tão importante do psiquismo. Somada a ela, encontram-se as reações à identificação (“Assim [como o pai] você não pode ser”), e aqueles que, mais tarde, farão o papel de substitutos/complementos ao pai, como professoras/es, a religião, políticas/os e escritoras/es – que podemos condensar no conceito de instituições. As instituições adquirem papel relevante na formação do supereu. Quanto maior for a repressão desempenhada na relação do sujeito com elas, tanto maior será a força exercida do supereu para aquele sujeito. Cabe assinalar o caráter ambíguo deste movimento: por um lado, o sujeito admira e ama este objeto da identificação; por outro, teme e rivaliza com ele[2].

Há algo que soa estranho quanto à forma de exposição do que Freud considera como sendo a “herança arcaica” e que mantém laços com o supereu no sujeito moderno. Segundo o autor, “ O que fez parte do que é mais profundo na vida psíquica de cada um se torna […]  no que é mais elevado na alma humana conforme nossa escala de valores”. Nestes termos, parece que o supereu internaliza valores morais supostamente externos e que, no percurso histórico,  estes valores são transmitidos culturalmente.

Tal definição ganha nomeação ao longo de toda a obra de Freud como “imperativo categórico”, conceito kantiano próprio também da modernidade. Parece haver um problema central nesta formulação: o que Freud nomeia como herança, poderia também ser chamado de imposição.  A ideia de que o supereu retoma “o que é mais elevado na alma humana” admite uma postura de respeito entre as múltiplas culturas, algo que historicamente não se comprovou. O que enxergamos no percurso antigo, medieval e moderno é a construção de culturas ditas civilizadas e a violenta opressão para ampliação dessa suposta civilização. E dessa forma, o supereu se torna o regulador moral a partir dos moldes da ideologia – ocidental – e a ele é atribuída uma força reguladora universal.

Nesta linha, Neuza Santos Souza defendeu que existe uma “internalização compulsória e brutal de um ideal do eu branco”. Em Fanon encontramos algo próximo, quando este afirma que nos processos de identificação, é o europeu (colono) privilegiado em detrimento de seu igual (colonizado). Tais identificações não são voluntárias, mas são induzidas por fenômenos da ideologia, que foram impostos através de tecnologias de poder institucionais. Arrisco dizer que não somente o sujeito negro tende a internalizar – ou devorar! – o ideal do eu ocidental, mas também aquele que em améfrica é lido como branco.

Se o supereu é fruto do complexo de Édipo, e que depois se confunde com os substitutos do pai que denominamos instituições, nos cabe pensar quais foram as instituições erigidas no território amefricano. Assim sendo, no curso da modernidade, o supereu está atrelado às instituições europeias. Daí surgiu o chiste, que posteriormente pareceu ter relação com este texto: o supereu, na verdade, é tomado de caráter europeu. Supereuropeu.

Se, como nos disse Freud, “a tensão entre as expectativas da consciência e as realizações do eu é percebida como sentimento de culpa”, e daí surgem a estrutura clínica nomeada de neurose, podemos reafirmar essa tensão como própria daquilo que Lélia Gonzalez denominou como neurose cultural brasileira, tendo no racismo o sintoma principal. O eu amefricano, inscrito no jogo racial como inferior, busca atingir as expectativas do supereuropeu, mas seu corpo não pode corresponder às exigências da ideologia.

É por esse motivo que Neuza Santos Souza atribui ao racismo brasileiro o “mito negro”, em que a hipersexualização, a violência, a infantibilidade e outros significantes estão atrelados à nega atividade. Isso ocorre porque as pulsões reprimidas pela institucionalidade judaico-cristã (sexualidade e violência), foram depositadas naquele cuja noção de cultura inexiste para o supereuropeu – o negro, ou seja, o não-ocidental.

Deste movimento, por exemplo, a ilusão da cultura como supressão da agressividade atinge o corpo amefricano, que desloca o desejo de morte para si, o que quer dizer, para seu semelhante. Tal desejo, inibido em sua meta, é em grande parte sublimado. O que resta do que não pode ser sublimado, é direcionado para aquilo que o Eu amefricano entende como sendo o Outro não-civilizado, e que, na realidade, é ele mesmo. Ou seja, a sublimação e o retorno ao próprio Eu são as vicissitudes da pulsão mais que acompanham o movimento de ser/estar do amefricano.

O sujeito amefricano, investido dos pressupostos desta ficção como fundante da cultura na Améfrica Ladina, luta para se adequar ao que não é ligado ao negro. A nega ação interfere na constituição de identidade do amefricano, como num verdadeiro trabalho de luto, em que a sombra do objeto recai sobre o Eu.

Sabemos, desde o famoso texto de Freud sobre o luto, e mais próximo ao nosso tempo, com as considerações de Butler, que precisamos fazer luto a todo tempo. Penso que neste processo, o amefricano, ao não conseguir fazer luto de sua parte ocidental por causa dos mecanismos tecnológicos e institucionais que o inseriram na sistemática colonizadora, sofre com uma espécie de “melancolia de raça”, na qual a identificação com o sujeito dito universal toma conta do corpo amefricano.

Algo assim é abordado na obra Macunaíma de Mário de Andrade – analisada por Magno e Gonzalez. Macunaíma nasceu “negro, depois ele branqueia”. O que Andrade apresenta é um mito de formação que pretende imprimir em Macunaíma uma característica da cultura brasileira – e porque não poderíamos pensar essa característica como algo de toda a ladinidade? O corpo e seu fenótipo mantém uma relação com o psíquico que diz respeito à internalização dos “valores brancos ocidentais”. Desta forma, a identificação de que fala Fanon, se explica na ação do supereuropeu.

Lélia afirma que o Negro pode ser entendido como o significante mestre, central nas nossas relações e que marca a própria linguagem. Ela chega a afirmar que “o português instituiu a raça negra como objeto a”. Daí que, por exemplo, temos ditos populares como “a Coisa (das Ding?) ficou preta”, “negro quando não caga na entrada, caga na saída”, e outras formulações racistas que atrelam o negro a significantes do Outro relacionados aos desejos e pulsões sexuais. Do mesmo modo, o supereuropeu atua como um severo repressor desses significantes, o que na realidade externa representa desde a morte simbólica até o extermínio do corpo no real.

Volto a dizer que o ocidental não é apenas aquele cujo fenótipo assemelha-se ao europeu, mas justamente aquele sobre o qual o supereu impõe a brancura de tal forma, que o Eu fica aprisionado. Essa neurose brasileira trata da luta entre as pulsões circunscritas ao Isso, frente à severidade de um Supereu com as marcas da institucionalidade ocidental. Disso resulta um Eu amefricano que luta para construir uma identidade no meio da disputa colonial, aparentemente deslocada no tempo – visto que a colonialidade não termina com a libertação política de um Estado.

Com isso, lembro de muitos casos em que, ao nascer, a criança é lida e representada oficialmente como “branca”. Também recordo da formulação de Achille Mbembe e sua ideia de que a constituição do negro como algo, está no campo do simbólico, e, portanto, da linguagem, marcada pela diferença em relação ao universal. Por isso, o amefricano nasce branco, nasce ocidental, nasce sendo filho de um discurso colonizador. Precisa enlutar esta brancura imposta pelas instituições, para tornar-se negro. Se o negro, enquanto S¹, é rechaçado em sua gênese, esse rechaço é oriundo de instituições que buscam dar civilidade à natureza. A certidão de nascimento caracteriza-se como representação simbólica disto.

Sabemos o quanto há de ficção em nossa realidade. A questão que se apresenta parece ser da ordem de retomarmos ficções apagadas pela mão colonizadora. Parece-me que o trabalho de elaboração de ficções de formação amefricanos ganha relevância sem igual. Retomarmos aquilo que diz a memória iorubá, tupi-guarani, banto, e de diversos outros povos que também fundaram esta cultura, é algo importante se quisermos repensar a psicanálise a partir do sofrimento amefricano. São estas ficções que operam na contramão das  narrativas coloniais, e tem a importância de atribuir novos símbolos ao negro, deslocando o significante e buscando reelaborar valores para a consolidação de um supereu oposto e inimigo da colonialidade. Esta pode ser uma das tarefas de uma psicanálise amefricana.

Referências:

BUTLER, J. Freud e a melancolia de gênero. In: Problemas de gênero. Feminismo e

Subversão da Identidade.

FANON, F. Os condenados da Terra.

FREUD, S. O Eu e o Id, “Autobiografia” e outros textos (1923-1925).

GONZALEZ, L. Racismo e sexismo na cultura brasileira.

LAPLANCHE, J. PONTALIS, J.B. Vocabulário da psicanálise.

MBEMBE, A. Crítica da Razão Negra.

SOUZA, N. S. Tornar-se Negro.

[1] Na obra citada, Freud define supereu e ideal do eu como sinônimos. Laplanche e Pontalis afirmam que essa diferenciação é melhor trabalhada em outros textos, sendo que o ideal do eu se tornou, para Freud, uma espécie de “subestrutura especial no seio do supereu”. Neste texto, optei por diferenciar os termos, entendendo o ideal do eu como um objeto com o qual o supereu severamente insiste em comparar ao eu.

[2] Sobretudo porque o supereu impõe ao Eu a necessidade de gozar a todo o tempo, como uma boca que come tudo, como o santorixá Exu.

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