Na medida em que o racismo, enquanto discurso, se situa entre os discursos de exclusão, o grupo por ele excluído é tratado como objeto e não como sujeito. Lélia González.
O que segue neste texto é uma reflexão acerca do filme “Corra”, do diretor Jordan Peele. E é também resultado de um convite em que tive a honra de participar como debatedora no evento Cine Café, da Clínica e Instituto Horizontes, local onde participo de um Grupo Estudos de Negritude. No meu entender, este evento serviu como dispositivo de intervenção, na medida em permitiu uma mudança de olhar de dois participantes.
Para falar das impressões que a película suscitou, farei um olhar com base nos textos de Freud (Das Unheimlich) o Estranho, de (1919). Neste texto, Freud nos fala dos sentimentos, emoções e sensações que nos assaltam ao vermos algo que parece familiar. Algo que devia permanecer secreto, mas que emerge, se manifesta. Busquei, através desse texto, dar conta daquilo que aparece na nossa frente nos assustando, nos assombrando. Aquilo que penso e sinto, mas não posso admitir. Aquilo que retorna sob a forma de uma inquietude, ou uma inquietante estranheza. Também passearei pelos textos Mal-estar na Civilização e Psicologia de Grupo e Análise do Eu. Em tais escritos, temos que Freud considera que a psicologia individual é também uma psicologia social, pois que leva em conta o seu meio e busca explicar, a luz da psicanálise, os fenômenos grupais. Também busquei em Frantz Fanon e em seu livro-ensaio Pele Negra Máscaras Brancas, subsídios para expressar as sensações e sentimentos que serão expostos.
Minha ideia inicial era ficar no lugar de espectadora para falar do filme e do que ele poderia provocar. Porém, o racismo que brota da tela assombra, inquieta e chega a questionar os dados de realidade. A cadeira fica desconfortável. A apropriação, a colonização que se vai delineando é por demais assustadora. É um estranhamento por demais conhecido dessa que assiste a película. Chego então à conclusão de que talvez eu deva trocar o lugar de apenas espectadora e colocar minhas vivências neste relato. E é impossível não fazer isso.
Na cena de início temos o rapto de um homem Negro. A música que é tocada no carro que pratica o ato desonesto diz “run rabbit, run” (corra coelho, corra), provoca uma sensação palpável de impotência. Talvez a lembrança arcaica do que já aconteceu com meus ancestrais negros na África: a diáspora forçada do povo negro.
Na segunda abertura do filme, vemos uma sala. Há fotos em preto e branco e uma, especialmente, de alguém usando máscara. O personagem, Chris, nos é apresentado passando em sua face espuma de barbear branca.
Ele é Negro. Essa cena me remete a Frantz Fanon e seu livro “Pele Negra Máscaras Brancas”. Neste livro, Fanon relata as angústias e comportamentos do homem e da mulher Negra, frente à sociedade européia embranquecida, mas que se encaixa, também, para apreendermos como se dá essas relações em nossa sociedade atual. Em seguida a câmera nos apresenta uma moça de pele branca. Dá-nos a entender que está em uma padaria e escolhe rosquinhas
em uma vitrine – essa cena irá se repetir mais à frente no filme. Descobrimos que esses dois personagens são um casal.
Terceiro início de cena: o casal de personagens, Rose e Chris, estão indo para a casa dos pais de Rose. No caminho, acontece um acidente que traz à tona algo traumático em Chris, mas ainda não sabemos o que possa ser. O casal mata um animal. Esse incidente trágico também provoca as palavras agressivas e racistas, ditas pelo pai da personagem Rose. Palavras que agridem os ouvidos e trazem a sensação de estranheza, mas que só poderiam
ser entendidas por quem é colocado no lugar de Ser animalizado desde o dia em que nasce. Provocam ainda, o estranho sentimento de que se está no lugar errado. Importante salientar que durante o debate do evento, a crítica a essa fala, provoca reflexão em um dos membros participantes. Temos aqui o dispositivo de intervenção e de mudança.
Inicia-se o “tour” pela casa. O pai de Rose mostra a Chris a sua coleção de artes de colonizador e os empregados negros da casa trazem-me a lembrança familiar de que já estive neste lugar. Faustino cita Fanon dizendo que “O corpo é o homem, e o homem, seu corpo” (Faustino, p.26), “mas esse corpo, quando negado pelas adversidades coloniais, se torna uma presença negada, um ente que nem homem ou mulher chega a ser” (Faustino, p.26). A notícia de que a casa dos pais da personagem Rose está longe da civilização traz o familiar estranhamento de impunidade a caminho. O diretor deixa-nos perceber que essa notícia deixa o personagem Chris desconfortável. Dá-se o início do processo hipnótico, sem o consentimento de Chris. O início do processo de colonização do Corpo negro que parece estar à disposição para que se faça o que se quer. Saberemos em seguida que esse personagem é um líder. Freud nos diz que é a força da ligação libidinal que une os indivíduos ao líder do grupo e é a identificação do sujeito com o líder e a identificação dos sujeitos entre eles que propiciam a coesão do grupo.
A sensação de estranheza familiar se avoluma e a percepção de que os acontecimentos são familiares também. Familiares do dia a dia do sujeito de pele Negra. Quer nos demos conta, quer não. Em 95 por cento do meu tempo
de vida, eu era a única negra no lugar de espectadora participante em eventos ou de aluna em sala de aula. Chris é o único Negro no evento que se inicia na casa. Os convidados chegam em carros de cor preta. Suas vestimentas são de cores pretas com algum detalhe em vermelho. Cores que remetem a morte e poder. Em determinado momento, Chris se sente aliviado por encontrar um homem Negro neste evento. Isso é apenas um engodo do diretor (engodo em favor do clima do filme). Descobrimos que esse personagem já está colonizado. Seu corpo já não lhe pertence. Chris é “consolado” por Rose, enquanto o seu próprio corpo é leiloado em silêncio pelos convidados do evento. E sabemos que é em silêncio que o racismo se imiscui, que ele se manifesta em nossa cultura brasileira, pois diante da situação colonial, a violência dispensa a necessidade de legitimação. Mais estranhamento e o início do pavor. Em o Mal-estar na civilização temos que o próximo é para o homem um objeto de exploração sem o benefício da consideração “já que o Outro – este objeto que não é mais visto nem tratado como extensão do Eu – só aparece como predicado dos desejos e gozos do colonizador” (Faustino,p.58).
O clímax se aproxima. Chris decide ir embora, descobre que Rose não é quem parece ser e toda a pantomima se esclarece. Ele é preso e fica em processo “pré-operatório”. Há uma TV com uma voz que o hipnotiza a cada vez
que acorda. Há o homem que o comprou e que irá se apropriar de seu corpo. Irá colonizá-lo, “simplesmente” porque pode. Vozes que dizem que o sujeito negro não é um sujeito. Não é humano. O sujeito Negro ouve essa fala de todas as formas ao longo de todos esses séculos de escravidão. Mas Chris não quer ser esse não-sujeito. Ele lacra seus ouvidos, com algodão, a essas vozes e se livra do destino iminente. Chris se vinga de seus captores. Me pergunto o que aconteceria se me permitisse sentir a fúria que o racismo provoca? Será isso que o diretor quer provocar no espectador? Enquanto essas cenas se desenrolam, vemos que Rose já está escolhendo outras vítimas. Essa cena é familiar no filme: a vimos quando Rose escolhe rosquinhas na padaria. Neste momento ela engole algo que tem o formato de um círculo. Novamente o pavor sinistro. O círculo do racismo que irá se perpetuar?
Quando o filme se encaminha para o final, a personagem Rose está no chão, ferida. Vemos um carro de polícia chegar. Chris levanta-se e ergue os braços, em sinal de rendição. Mais pavor estranho! Sabemos o que acontece
quando a situação envolve o sujeito Negro e a polícia. Sentimento de impotência, revolta, raiva, angústia. É o fim de Chris! Quem sai do carro – que não é carro de polícia – é o amigo de Chris. Esse diz que recebeu treinamento e que sabe resolver situações difíceis (neste caso, uma situação sinistra). Essa crítica, trouxe outra reflexão de um dos integrantes, o qual contou que nunca não entendia seu mal-estar diante de um carro de polícia.
COMENTÁRIO FINAIS
E aqui trago duas falas se completam. Freud e seu texto “O Mal-estar na civilização”, aonde ele diz que é impossível amar ao próximo como a si mesmo e que só posso amar ao outro, na medida em que o outro me ama e coloca a
identificação com o outro, como fator possível de ligação afetiva. Fanon em seu livro Pele Negra Máscaras Brancas, escreve: “acredito sinceramente que uma experiencia subjetiva possa ser compartilhada por uma pessoa que não a viva e não pretendo jamais sair dizendo que o problema do Negro é meu problema, só meu” (p. 86).
Quando criança eu nunca questionei por que eu era chamada de feia por minhas colegas de pele branca na escola. Eu era uma criança feia. Porém nunca acrescentei a cor de pele nesta denominação. Claro que não posso dizer que esse fator estivesse presente no bullyng. Nunca questionei o mal-estar de ser tratada de forma diferente em diferentes locais. Eu iniciei esse processo de estranhamento, mas não de questionamento, quando anos mais tarde assisti a um filme chamado “ A cor da fúria” (1995, diretor Desmond Nakano). Este filme retrata uma sociedade norte-americana em que os papéis de dominação social estão invertidos: os Negros estão no lugar de dominação e são retratados de forma cruel. Desde então acostumei-me com o estranhamento. Ele passou a fazer parte de minha vida. Esse estranho sinistro passou a me ser familiar. O processo de questionamento dessa autora, deu-se bastante tardiamente. Ele aconteceu quando, há cerca de três anos atrás, foi apresentada de maneira atravessada, a Neusa Santos de Souza. Fui pesquisar quem era aquela mulher e quando soube quem era e ao ler seu livro “Tornar-se Negro”, tornei-me Negra.
REFERÊNCIAS
As relações raciais no Brasil após a abolição. In. Lélia, por um feminismo afro-latino-americano. Organização: Rios, Flávia. Lima, Márcia. Zahar.
FANON, Frantz. Pele Negra Máscaras Brancas. EDUFBA, Salvador. 2008.
FAUSTINO, Deivisson. Por que Fanon, porque agora?: Frantz Fanon e os fanonismos no Brasil. São Carlos, S.P. 2015.
FREUD. O Mal-estar na Civilização (1930). Imago, 2006.
FREUD. Psicologia de Grupo e Análise do Ego (1921). Imago, 2006
FREUD. O Estranho. (1919). Imago, 2006.