por Cíntia Lagn, psicanalista
Texto lido no evento “Um papo incômodo”, com psicanalistas amefricanas, realizado no dia 03 de junho, em Porto Alegre.
A partir de uma provocação feita pela Psicanalista Eliane Marques, coloquei-me a escrever sobre a forma como sou tocada pela psicanálise amefricana, que está sendo tecida teoricamente a partir da nossa práxis e do discurso novo que nos vai constituindo a cada reunião.
Sinto-me em um processo transicional absolutamente instigante. Como psicanalista, já estava em contínua formação, mas o acréscimo do significante “amefricana” à Psicanálise levou-me a buscar mais informações sobre os discursos que compõem essa Améfrica Ladina, proposta por Lélia Gonzalez.
Nessa transição, transitei pelas palavras de Neusa Santos Souza, Grada Kilomba, Djamila Ribeiro, Chimamanda Ngozi Adichie, Scholastique Mukasonga, Conceição Evaristo, Silvio Almeida, Teresa Cárdenas, Itamar Vieira Júnior, Isabela Figueiredo, Lélia Gonzalez, Georgina Herrera, Graciela González Paz, Mel Duarte, Ana dos Santos, Lilian Rocha, Daniel Munduruku, Ailton krenak, Cristine Takuá, Carlos Papá.
Suas produções, literárias ou não, apresentaram –me sujeitos amefricanos e, onde tem sujeito a psicanálise amefricana está implicada. Escutei, nesses textos, palavras sobre a relação com a natureza, com a morte, com a ancestralidade, com os encantados, com o tempo, etc.; o que fez expandir a minha escuta e o meu pensamento para além do que o discurso hegemônico quer que ouçamos e pensemos.
Somos efeito da linguagem. A imersão em tantas palavras novas e em tantas experiências singulares tem me atravessado e abalado minhas cadeias simbólicas, produzindo uma rachadura no discurso da branquitude que me constitui, abrindo um espaço para o deslizamento de significantes e a criação de algo novo. Esse processo de transformação não é fácil, mas é necessário e urgente. Falo em primeira pessoa, mas sabemos que a fala é social e, portanto implica todos os falantes.
Freud chamou de “incômodo” tudo aquilo que deveria ser mantido em segredo, mas escapa e se revela. De que conteúdo estaria ele falando? Nessa dimensão do secreto, encontram-se as verdades secretas, cujo conteúdo é insuportável.
Nosso aparelho psíquico costuma banir aquilo que o eu supõe não estar de acordo com o contexto e, num jogo de forças, manda alguns conteúdos para o (cala)bouço, um “bolso de calados”, onde se encontram os desejos sexuais, infantis e reprimidos, esses que são impetuosos e ávidos por satisfação imediata. Se esses conteúdos aí estão, já nos são familiares, já sabemos deles e queremos mantê-los bem escondidos.
Trago alguns exemplos de conteúdos que transbordaram desse calabouço há poucos dias e se apresentaram em seus disfarces linguísticos, causando incômodo:
Dizer que um vereador negro de Curitiba “invadiu” ao invés de “entrou” na igreja N. Sra. do Rosário dos Pretos com outros manifestantes; chamar uma vereadora trans do Rio de Janeiro de “aberração”, porque tem um pênis; surrar um jovem, na ExpoAgro de Franca (SP), porque é travesti; dizer que um homem negro sergipano “morreu”, no lugar de divulgar que foi “assassinado” pela Polícia Rodoviária Federal; chamar de “operação” na Penha o “extermínio” de 25 pessoas da Vila Cruzeiro no Rio de Janeiro.
Essas distorções se repetem em tantas bocas, produzindo um ritmo próprio, repetem-se, repetem-se como a lalação infantil, que fala para nada dizer, sem produzir diálogo, apenas produzindo efeitos, entre eles, o gozo daqueles que a produzem. Denegam as narrativas outras, para sustentarem uma narrativa única, que lhes garante a posição daquele que assegura ou impede acessos e existências.
É esse conteúdo que retorna disfarçado e incômodo que tem a ver com a psicanálise amefricana, é com esse material que trabalhamos, decifrando-o, produzindo cortes e buscando promover transformações.