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O incômodo mito

por Lúcia Bins Ely, psicanalista

Texto lido no evento “Um papo incômodo”, com psicanalistas amefricanas, realizado no dia 03 de junho, em Porto Alegre.

“Não sou eu quem me navega

quem me navega é o mar”

Ao ir construindo a singularidade do discurso da psicanálise amefricana, estou me posicionando enquanto psicanalista amefricana.

Médica, escritora e ativista pela causa antirracista, Jurema Werneck detalhou sua história de luta. Pessoas negras, conta, sabem o que é ter a experiência de ter que sobreviver constantemente ao genocídio. “Esse país foi construído pela violência todos os dias. Não é que existe falta de empatia. Essa nação foi fundada na crueldade e se mantém nela”, opina Jurema, cofundadora da Criola e diretora-executiva da Anistia Internacional.

A chamada América Latina, que, na verdade, é muito mais ameríndia e amefricana do que outra coisa, apresenta-se como melhor exemplo de racismo por denegação. Assim fala Lélia Gonzalez. Trata-se de uma reflexão que nos permite compreender como esse tipo específico de racismo pode se desenvolver para se constituir numa forma mais eficaz de alienação dos discriminados do que a anterior.  A afirmação de que todos são iguais perante a lei assume um caráter nitidamente formalista em nossas sociedades. O racismo latino-americano é suficientemente sofisticado para manter negros e índios na condição de segmentos subordinados no interior das classes mais exploradas, graça à sua forma ideológica mais eficaz a ideologia do branqueamento. (até aqui Lélia)

A psicanálise amefricana pode contribuir com isso, já que, como sabemos, a ideologia é inconsciente. Isso vai se transformando no trabalho de uma análise e nos trabalhos grupais na instituição. Tanto socialmente, como cada uma como sujeito – em suas análises – ir nos separando dessas ideologias do branqueamento, por exemplo, e cortando fora cada ramo dessas ideologias para forjar uma ideologia outra, para forjar uma maneira singular de se posicionar, mais ligada ao desejo de cada sujeita/o/e.

Me posiciono enquanto psicanalista amefricana por uma dívida que tinha com Eliane Marques que possa não se sentir a única psicanalista amefricana nesta mesa! Falo por mim, mas estão também minhas colegas de mesa (Marcela Villavella, Cíntia Lang e Lucas Oliveira) e também todas psicanalistas da Après Coup, as integrantes dos Seminários, e todes que trabalham para que o movimento da construção da psicanálise amefricana siga crescendo. E todas vocês que aqui vieram. E é da insistência com a psicanálise, com a transformação, com a radicalidade de uma psicanálise sempre nova, aberta a novas questões e abrindo novos caminhos, novas cadeias significantes, é dessa insistência e de nosso trabalho incansável, e refiro-me a nós como grupo, como instituição, que sustentando com trabalho nosso projeto no tempo, ouso me incluir como uma psicanalista amefricana, pois se trata mais de uma posição no discurso do que do tom da pele. É da insistência da psicanálise que ouso dizer:  – Eliane, não estás sozinha como psicanalista amefricana! Minhas mãos são negras… estas mãos que escrevem, estas mãos que trabalham. Talvez, dívida com Eliane, como representante de todes que sofreram racismo na Améfrica. E poder dizer: não estão sozinhas/sozinhos/sozinhes!

É um incômodo estarmos construindo a psicanálise amefricana, pois falamos de coisas que eram renegadas, denunciamos violências, e que o racismo é sim um tema para trabalharmos. Mas, em especial, é também uma alegria este encontro em que forjamos grupalmente a psicanálise amefricana.

Ouso o incômodo de não ficar com os mitos de sempre e estudar outros que nos façam discorrer sobre valores, mitos, significantes que estiveram reprimidos, de repente, do próprio discurso da psicanálise.

Os Orixás e os Mitos

Exu é o orixá sempre presente, pois o culto de cada um dos demais orixás depende de seu papel como mensageiro entre os orixás e os humanos. Somente a partir de Exu, os orixás podem se comunicar com os humanos e vice-versa. Parece ser que Exu estaria representando, neste viés, a própria linguagem, a possibilidade da existência da linguagem, das línguas, da fala. Aqui parece que Exu estivesse representando a própria condição subjetiva de sermos sujeitos à linguagem, assujeitados a ela. – E cada analisante, com seu trabalho em psicanálise, produz a passagem de ser um sujeito da linguagem, para ser sujeito do desejo, sujeito da lei da linguagem. –  Essa divisão que ocorreu e ocorre a nós ao nos tornarmos sujeitos ao sermos atravessados pela linguagem. Este corte no $, o sujeito barrado, cuja morada é a linguagem. Esse enigma, esse impossível de saber: a origem da raça humana, digamos. É através do mito que podemos nos haver com a noção de origem.

A linguagem como um dentro e fora. O Exu como um dentro e fora. Exu como aquilo que liga.

“A morte, entretanto, não aplacou a fome de Exu.”

Mesmo depois de morto, Exu tem uma fome voraz. Exu mesmo em espírito estava pedindo a atenção de Orunmilá. Exu queria comer. Foi então que Orunmilá, tendo escutado o oráculo, falou: Para haver paz e tranquilidade entre os humanos é preciso dar de comer a Exu, em primeiro lugar.

Podemos pensar que a morte de Exu signifique sua permanência como símbolo, como mito, aquilo que precisa ser alimentado em primeiro lugar. Não será que está representando o lugar da lei? Nos constitui como amefricanidade, e Exu está na base da nossa formação como psicanalistas amefricanas sejamos negras ou não.

Faz lembrar o subtítulo do artigo de Eliane Marques na revista Anna.O: Aquele que tem fome de lei.

“Exu pertence a uma linhagem divina ou real, mas ocupa lugar fora dela.” Como dizíamos, algo que está ao mesmo tempo dentro e fora.

Parece que o incômodo – para tomar o título deste evento – está ligado, em primeiro lugar, a nós mesmas, as psicanalistas amefricanas sairmos do “cômodo”, trabalhar e trabalhar sobre os mitos que estiveram reprimidos na Améfrica. Os mitos das civilizações originárias das améfricas. Se deixar atravessar por esses mitos.

A psicanálise desde seus inícios, é uma ciência aberta, está sendo construída, não está acabada.  É um caminho de perguntas, de questões. É nosso trabalho seguir investigando através das análises pessoais, dos seminários, das supervisões e produzindo uma psicanálise amefricana. Construir a psicanálise amefricana como um discurso apoiado em conceitos e mitos, não em dogmas. A psicanálise amefricana como este campo em que a verdade é uma produção, mas que se chega somente a verdades parciais, nunca um todo de verdade, digamos. E vai se deslisando. A metonímia da linguagem. Onde a razão cai por terra. E caímos nós também a cada vez que estivermos em lugares de ilusão, de idealização, ou quando nos supomos no lugar da verdade.

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