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Presença de analista e movimentos identitários

Por Lucas Oliveira

Psicanalista, psicólogo

Como sustentar a ética psicanalítica sem passar por cima das reivindicações sociais de grupos que se denominam como identitários?

Me vi suscitado a produzir esse escrito por formações inconscientes de nosso grupo que deixou essa questão em meu corpo. Me digo psicanalista e me digo parte do movimento LGBTQIAP+. Movimento esse que se diz identitário. A palavra identidade aparece como uma pedra no caminho de um psicanalista como eu. Lembro que enquanto estava na faculdade eu queria estudar sobre identidade. Eu queria escrever meu tcc sobre identidades masculinas. Queria entrar nesse conceito para implodi-lo. Minha orientadora falava comigo da dificuldade de usar as teorias que estava pensando e manter esse nome: identidade. Eu entendia. Epistemologia e tudo mais. No meu TCC eu tinha que ser coerente epistemologicamente. Bem. A palavra identidade sumiu do meu tcc. Fui por outros caminhos, me apaixonando por outros modos de dizer. Mas o fato é que a palavra identidade sumiu. Não fez presença?

Na verdade, foi começando a escrever isso, essa coisa que chamo de escrito que me dei conta disso. A palavra identidade sumiu. Temos visto por aí, dentro do campo social, uma confusão muito grande. De um lado, psicanalistas que por ouvir a palavra identidade com o gosto estranho que ela tem, pretende expelir essa palavra. Vomitar. Deixar fora. Não é do campo analítico. Que campo analítico é esse? Um dos motivos da palavra identidade ser escutado por mim com um gosto amargo e praticamente intragável é a definição: idêntico a si mesmo. Oi? 2022 e essas pessoas querendo ser idênticas a si mesmas? Mas não percebemos que ao vomitar essa palavra e tudo que vem com ela: os movimentos identitários, por exemplo, estamos também, na verdade, fazendo com que a teoria psicanalítica se faça a mesma. Idêntica a ela mesma, por mais que a diferença que seja perseguida. Paradoxo difícil.

De outro lado, psicanalistas e movimentos identitários apaixonados por se fazerem permanentes. Por estabilidade. Donos de uma moral sufocante que não dá espaços para erros, falhas. Paradoxalmente que não dá espaço para o inconsciente e para o erotismo. A não ser um erotismo dentro de uma caixa extremamente frágil que se tem que lidar com um extremo cuidado. Errou? Destruição!

Que sufoco heim? Ainda bem que como somos psicanalistas sabemos que não existem apenas dois lados. Aí entra a presença de analista. Marcela diz no seu artigo para a revista: “No deberíamos confundir la ausencia de cuerpo con la falta de presencia”. Presença de analista, como uma manifestação do inconsciente, não consegue, por mais que tente, estar em nenhum dos dois lados.  Marcela continua: “El cuerpo del analista esta en juego en el lugar de la funcion de semblante de objeto, su lugar es escuchar, es partirse, es hacerse parte de las palabras del otro.”

Fazer parte das palavras do outro é fazer parte também desse Outro por trás, ou melhor, do lado. É fazer parte, através do semblante e não do Eu, da luta pela identidade. Agora pego essa palavra e tento dar um giro. Identidade como RG, que atesta a presença do outro no mundo. É por aí que devemos pensar os movimentos ditos identitários. Querem ter um atestado de possível. Serem reconhecidos como iguais. E isso caí sim em um lugar difícil. Porque nunca seremos iguais aos outros e nem a nós mesmos. Mas se essa palavra igual faz algum sentido é em uma igualdade de possíveis. A luta por também fazer parte das decisões sociais. Por também poder ter sua cultura reconhecida com legitimidade simbólica. Mas a função do semblante carrega em si o partir-se, o desfazer-se. Presença de analista dá lugar a falta.

O sujeito do inconsciente, o sujeito desejante se faz presente. Se faz presente como não idêntico a si mesmo. Se faz presente no vir a ser. Mas para vir a ser precisa ao mesmo ter a possibilidade de ser. De existir. E aí podemos entrar no estatuto da existência. Sobre isso me ocorre o erro teórico que caímos num simples dizer que nos escorrega muitas vezes. Quando chamamos o inconsciente de nosso inconsciente ou de inconsciente de fulano. Extimidade. Uma fratura da intimidade. Sem a operação do significante não teríamos como resto o a. Objeto a. Este, que faz alusão a primeira satisfação que supostamente buscamos.  Entrando nisso, não me parece interessante usar pronomes possessivos em relação ao inconsciente. Mas usamos.

Para vir a ser precisa de um estatuto que nem todos temos. Ainda não sei bem por onde percorrer, que nomes dar. Mas é um estatuto de poder. Poder ser gente. Poder ser passível de luto. Poder ser tratado como sujeito. Poder falar e ser ouvido.

Marcela diz: La presencia del analista está tramada con lo inconsciente, es una manifestacion del inconsciente. Uma manifestação do inconsciente e não do nosso inconsciente. Uma manifestação de algo que manca, que produz hiância. Ela continua:  Es el acto analitico el que produce cambios sujetivos, cambios en la economia del goce. Sabemos que la interprtacion transforma, toca al cuerpo, lo perfora. Lo rasga.

Rasgar o corpo. Trocas subjetivas e com a economia do gozo. O ato analítico transforma. Faz partir a unidade. Da presença para a falta. A falta simbólica. A falta propriamente psicanalítica. Vamos continuar usando essa palavra em relação ao conceito psicanalítico e diferenciar, assim como Marcela diferenciou na primeira revista Anna O. O mal estar na cultura da Cultura do mal estar. A falta que queremos eliminar é a falta de possíveis. A falta da não violência. E sim… percorrendo isso a gente também quer eliminar a falta simbólica, a falta que produz o sujeito desejante. O desafio é escutar quando é esta falta que nosso paciente quer tamponar ou se é a falta de possibilidade. O sujeito barrado é barrado de unidade, de continuidade, se quisermos: de identidade. O sujeito barrado é o efeito do discurso psicanalítico, aquele que não pode tudo, aquele que não goza de tudo. Mas ele pode. Algo ele pode. E esse algo, esse pequeno a(lgo) é importante que vocês, que nós, nos importamos com ele.

Temos que estar atentos e fortes para enfrentar o discurso hegemônico que se faz presente com o momento político que vivemos. Mas temos que estar atentos também com o cuidado de preservar, produzir e sustentar a falta que tanto fala (escrevendo eu escrevi falta, que ato falho, heim?) a psicanálise. Maaas. Temos que estar atento a isso que os movimentos sociais chamam de falta. Falta de condições sociais, simbólicas subjetivas, seja lá. Temos que estar atento que nem toda vez a palavra falta aparecer se está falando da tentativa de tamponar a falta. Temos que cuidar quando a falta simbólica se faz ser preenchida. Mas temos que cuidar também com as interpretações selvagens, deslocadas do contexto de análise e mesmo nos contextos de análise se fazem presentes porque também falhamos. Como diria Lacan: graças a deus.

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