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Uma escrita-cura

Por Yuri Garcia

psicólogo e psicanalista em (de)formação

Ao pensar em escrever sobre algo que me tocou durante esses primeiros meses de Clinicar, inevitavelmente meu pensamento direcionava a posição que eu sentia ocupar nesse espaço de trocas. Essa escrita talvez tenha um tom intensamente pessoal e talvez também seja uma escrita-cura, então peço licença para falar. Falar, tema tão difícil para mim, visto que sempre antes de falar, planejava, pensava e me silenciava inúmeras vezes. No primeiro encontro já se falava a respeito de cada analista ter seu estilo, sua maneira particular, contudo, o fato de estar me sentindo ainda “engatinhando” no estudo da Psicanálise, em todos os momentos que sentia uma brecha para me posicionar, algo me impedia. Em primeiro momento, a proximidade com o fim da graduação com o inicio do Clinicar, fazia com que eu ainda permanecesse na posição de estudante, de maneira que o espaço do Clinicar me colocava como um estudante de graduação diante de professores experientes, dessa maneira me posicionando como alguém inferior naquele espaço. A graduação em Psicologia me apresentou uma Psicanálise que é elitista e branca. O ensino da Psicanálise se apresentando como difícil de ler, de entender, de interpretar e tampouco sendo possível se questionar. Freud era assim, Lacan era dessa maneira, não há outras maneiras de se ler, não se pode questionar, não se pode trazer outras interpretações para o que estava escrito. Dessa maneira, a questão se apresentava: a Psicanálise é para mim? A batalha que deveria se tornar uma batalha de questionar a respeito das atitudes dos brancos que motivam essa concepção própria, se torna uma batalha contra um sentimento de inferioridade, já diria Virgínia Bicudo. (BICUDO, 1945/2010, p. 103). No escrito chamado “O acaso de uma psicanalista amefricana”, de Eliane Marques, encontro palavras que dizem desse período de estudante, em que a Psicanálise se apresentava perto-longe: “a resistência ao ingressar no discurso analítico, como um rompimento da majestade da razão, também encontra reforço num discurso acadêmico, que se quer descolado, descolonial ou decolonial, mas que cada vez se mostra mais orientado pelo lugar da verdade. Aí, nessa paragem, o colonizador, seja ele quem for, não ouve, não conhece, mas quer se apossar, estuprar e destruir. Na maioria das vezes, ele consegue.”

Esse primeiro momento de estudos na Après Coup foi um momento de transição. Aquele que antes não se sentia pertencente, sente que hoje pode pertencer a esse espaço. Precisou desenvolver uma transferência para com este grupo que se formou, para que esse espaço de troca criasse uma outra função para mim. Se antes eu não achava que era permitido ocupar um lugar por sentir que eu não poderia, hoje eu ocupo esse lugar e consigo me posicionar como um analista em formação. É preciso que eu fale sobre esse tema para que eu consiga demarcar minha posição de analista, ocupando este lugar simbólico, antes deixado vago.

Nessa primeira metade do ano, tive minhas primeiras experiências como Psicólogo formado-Analista em formação. Deformação, na verdade, pois o que eu tinha de visão a respeito de o que era um/uma analista, foi aos poucos se deformando ou mesmo se destruindo, para que pudesse se constituir uma nova visão.

Para que pudesse existir essa passagem entre um momento a outro, foi necessário que inconscientemente se instaurasse uma nova ordem. Foi necessária a intercessão da Psicanálise Amefricana para eu entender que minha boca, anteriormente objeto, poderia ser para a fala, eu tenho lugar. No mito de Exú, “Exu come tudo e ganha o privilégio de comer primeiro” o mito fala de “uma renúncia a algo para que um novo tenha lugar – se Exu deverá ser servido primeiro é por que tal ordem possibilita que outres, e não apenas um, tenham lugar à mesa. A palavra primeiro substitui a palavra tudo, de modo que não mais nos preocupemos, pois haverá comida para quem quiser comer.” (Eliane Marques em Coluna ZH “Nem só de mitos gregos se alimenta a humanidade”). A partir desse mito penso que durante essa metade do ano, substituo a palavra estudante pela palavra psicólogo/psicanalista em formação e essa substituição por si só instaura uma nova relação com os espaços que ocupo.

 

 

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