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Movimento Um

Por Pedro Henrique Machado

Psicólogo e Psicanalista

 

Pensei em iniciar esse escrito de diferentes formas. Em todas as formas, modos e tentativas de escrita uma tríade de questões se apossava do texto. Fui registrando as letras que formaram palavras para expressar um pensamento, abri caminhos e me vi em uma encruzilhada. Não em EN CRUZ ILHADA, sozinho, isolado e ilhado com a imensidão da complexidade humana; mas sim em uma Encruzilhada junto com Exú, desbravando os caminhos possíveis e inventando os caminhos impossíveis. Ir ao ato de escrever, retirar do campo das ideias aquilo que em um movimento Iansânico gira ganhando sentidos outros, requer que eu escolha um(uns) caminho(s). Me permito
escolher e desescolher caminhos enquanto teço essa escrita.

Passada a resistência em escrever e entendendo que a construção desse escrito requer algumas escolhas que são temporais; o único compromisso que assumo é o da fluidez entre os meus pensamentos. Quem sabe de certo modo exercitando a regra fundamental da psicanálise: a associação livre. Assim, permito que a tríade vaze para essa escrita preta no branco. De fato, a escrita que aqui se coloca é uma escrita preta, feita não apenas pelas pretas mãos de quem agora as lê; ela é feita por todas e todos as teóricas e teóricos insubmissos que romperam com a mascará do silenciamento. Que ousarem fazer-se corpo e ousaram existir. A tríade catalizadora dessas reflexões se formou a partir da presencialidade física, do contato e das trocas realizadas com esse grupo. Então, o encontro presencial, o evento Um Papo Incômodo e a questão: quais os incômodos que a psicanálise amefricana pretende sustentar? Tem constituído alguns dos caminhos reflexivos que por onde trafego, avanço, transito. Das reflexões que surgiram
uma delas diz respeito a fala, ao ato de falar. Fanon em Pele Negras, Máscaras Brancas afirma que falar é existir absolutamente para o outro. Mas, como podemos falar e construir um discurso sobre nós mesmos [pessoas negras] quando na maioria dos espaços a escuta é demasiadamente branca? Como um corpo preto pode falar a partir do
mito de Narciso se o que nos representa são os Itãns? Os itâns de Osun com seu espelho, os de Ogun com suas lutas, os de Exú com a comunicação e também com o equívoco.

Para a travessia da análise o encontro com o analista que nos escuta e nos enxerga a partir do que é falado é fundamental para que a transferência e o processo analítico se inicie. Neuza Santos Souza, psicanalista e psiquiatra, autora do livro Tornar-se Negro, em textos complementares escreve “o corpo, para a psicanálise, não é um dado natural: é algo que se constrói, algo que se inventa […] o corpo com o qual a psicanálise opera é uma imagem – uma imagem feita de palavras e afetos”.

Refletindo sobre o corpo que é construído a partir da palavra, lembrei de uma
cena que retorna ao pensamento. No ano de 2020, primeiro ano da pandemia, eu realizava estágio em um Hospital Universitário no Rio Grande do Sul; dentre os serviços em que me inseri estavam a UTI Adulto e o Atendimento Domiciliar. No serviço de Atendimento Domiciliar pego a listagem dos pacientes que estavam em atendimento e vejo a descrição do paciente: Antônio¹, homem, por volta dos 60 anos, em atendimento domiciliar, metástase na coluna vertebral, maior parte do tempo acamado, família precisando de acolhimento – principalmente as filhas. Eu e duas colegas vamos realizar a visita na casa da mãe do Senhor Antônio. Durante os atendimento domiciliares que realizei nesta história, eu ficava responsável pelo diálogo com as familiares. A mãe e as irmãs: negras, a esposa branca e as filhas negras. Foi ali, quando o corpo negro do psicólogo/psicanalista em formação se colocou como presença que a cura tomou para si um outro sentido; dentro dessa relação a presença do analista auxilio que esses familiares descobrissem a sua voz e o seu corpo, diante do processo de cuidados paliativo o corpo que se formou não foi o constituído apenas de (como esperado pelas colegas), constituiu-se um corpo de afetos. Passado alguns dias Seu Antônio sai da lista; recebo a informação de que ele está internado no HUSM, mas não sabem qual o andar. Descubro que ele está internado no 4º andar e vou lhe fazer uma visita. Vou ao encontro do Seu Antonio, que estava falante, acordado e muito bem. Eu, vestindo um jaleco branco adentro o quarto e lhe digo: Oi! ele me olha, afirma que lembra da minha visita a sua casa e fala: É tão bom ver alguém assim (passa a mão no seu braço preto) como eu, aqui! Lhe olho e digo que fico muito feliz em ouvir seu testemunho, conversamos eu vou embora.

A constituição dos corpos-atores da cena ocorreu pela via da palavra, sim! Mas também pela via da escuta e da observação. Ao me colocar como ouvinte atento das histórias contadas, ao observar que o corpo que se formava era um corpo negro, pude oferecer-lhe um espelho para que se vissem. Através da escuta apresentei o espelho de
Osun, no qual nos miramos e vemos muito mais do que o nosso refletido, enxergamos as/os que vieram antes, nesta mirada enxergamos nossa história. E no reflexo, ou na reflexão sou reconhecido pelo Senhor Antônio como um dos seus, e o reconheço como um dos meus.

Acredito que um dos trabalhos do psicanalista americano em formação (no meu caso, à época do exemplo, psicólogo em formação) seja oferecer para quem está aos nossos cuidados o espelho de Osun para que se vejam, para que se reconheçam; para que criem o seu corpo psicanalítico, mesmo que isso se aconteça nas últimas horas de
vida. Finalizo esse movimento criativo compartilhando um dos primeiros movimentos percebidos em que meu corpo atravessado pela psicanálise amefricana começa a ser (re)conhecido. Como disse Coutinho “é preciso jamais esquecer que, mergulhados no inconsciente como sempre estamos, nunca podemos saber o que estamos fazendo no momento mesmo em que fazemos, e em que direção estamos caminhando -só-depois”, por isso só depois é que percebi que escrevia já amefricanamente.

Meu corpo quer falar, mas trava.
Meu corpo quer gritar, mas é silêncio.
Meu corpo quer sentir e, vai sentir, vai gritar e vai falar.
Não sou silêncio, nunca fui!
Fui silenciado e por isso travo, por isso estanco, por isso imóvel não danço no compasso
que a negritude me convoca.
O silêncio imposto perpassa a escrita, torna-se silêncio de voz, de escrita!
O olhar julgador do outro [o branco, a branca] me atravessa como navalhas afiadas e
lentas:
– Eles estão tendo êxito na tarefa de nos silenciar.
– Eles estão tendo êxito na tarefa de não nos deixar existir.
Mas insubmissos, revolucionários, na força de Dandara, de Zumbi, na força do
quilombo – vamos falar.

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¹ Nome fictício.

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