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Qual a cor da tua pele?

Por Anelore Schumann

psicóloga e psicanalista

Triste época! É mais fácil desintegrar um átomo do que um preconceito.

                                      Albert Einstein (1879-1955)

 

O censo oficial brasileiro classificava as pessoas em 5 grupos diferentes de acordo com sua cor de pele: branco, preto, vermelho, amarelo e pardo. No censo do IBGE, Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, de 1976 a pesquisa introduziu uma questão em aberto: “Qual é a sua cor?”

Acastanhada, agalegada, alvinha, azul-marinho, escura, bronze, cobre, cor de canela, cor de cuia, meio preta, lilás, amarelosa, puxa para branca, queimada de praia, pálida, branca melada, branca suja, sarará, morena bem chegada, enxofrada, burro quando foge, mulatinha, morena-jambo, queimada de sol, café com leite, etc…

Foram 136 cores de pele autodeclaradas na pesquisa elencadas em uma lista. A artista carioca Adriana Varejão criou, a partir dessa lista, 33 tubos de tinta à óleo com a cores nomeadas. A obra “Tintas Polvo” criada em 2013 fez parte da mostra “Mulheres na Coleção MAR” do Museu de Artes do Rio de Janeiro em 2019.

Tintas polvo. caixa de madeira com 33 bisnagas de tinta nomeadas em português e inglês. Adriana Varejão – 2013

Tintas polvo (detalhe) Adriana Varejão – 2013

Adriana Varejão trabalha com pesquisas e temas polêmicos, temas muitas vezes incômodos. No navegador global encontrei uma entrevista que ela concedeu para a revista Arte!Brasileiro com o título: Povo de cores infinitas, realizada por Leonor Amarante e Patrícia Rousseaux em 2018. Colo aqui uma parte da mesma:

 Adriana Varejão está sempre alerta. Sua curiosidade e sensibilidade permitem localizar conotações culturais e simbólicas em objetos aparentemente simples. Pode ser um azulejo, um prato ou até uma bisnaga de tinta. Tudo pode ser transformado, em seu trabalho.

 Sua inspiração para o projeto Tintas Polvo nasceu nos anos 1990 em uma associação entre sua pesquisa sobre tintas para pintar a pele em suas obras e a leitura de um censo realizado pelo IBGE de 1976.

 ARTE!Brasileiros – Conte um pouco sobre o processo de pesquisa histórica e as associações que você fez. Como é que você chegou a essa pesquisa de cores?

Adriana Varejão –…. Não lembro exatamente quando tive conhecimento desse censo, mas creio que foi no final dos anos 1990. Vi a lista das cores de pele, e eu tinha um trabalho em mente, no qual eu “colecionava” cores de pele, cores de tinta de pele de vários lugares do mundo. Na maioria das vezes, elas eram rosa e pensei em trabalhar essa questão. Juntei as duas coisas e pensei em fabricar tintas com cores de pele que não fossem aquele rosa, e sim cores de pele mais miscigenadas, mais relativas ao que realmente existe. Juntei as duas informações, a questão das cores que apareciam no censo e que vinham nomear as tintas e a própria fabricação da tinta óleo. Na verdade, fiz isso mais no sentido de dizer que cor é linguagem, antes de qualquer outra coisa. Cor vai muito além da questão racial. Acho incrível a ideia das pessoas autodenominarem sua cor. Fiz alguns trabalhos nos anos 1990 que eram autorretratos meus, como se eu fosse de diferentes etnias. Fiz um tríptico em que eu era chinesa, índia e moura. Também já havia flertado com questões relativas às castas sociais mexicanas, todas as classificações raciais entre índios, ameríndios e espanhóis. Essas questões sempre habitaram meu universo de leitura e de conhecimento.

Classificar a humanidade em raças baseada na ciência da “Raciologia”, ajudou a instaurar e validar, no século XX, um sistema de dominação ideológica racista que perdura até os dias de hoje. Quanto mais essa ideologia produz um padrão ideal de branquitude pseudo universal, valorizando em demasia homens, brancos e ricos, pior para os que não estão dentro desse fenótipo.

A psicanálise diz que a ideologia é inconsciente e é transmitida, também, de forma inconsciente. Os preconceitos fazem parte da ideologia, são mais difíceis de desintegrar que um átomo, contribuem para banalizar e fortalecer a violência contra as maiorias marginalizadas: cidadãs negras, LGBTQIAP+, indígenas, mulheres e sujeites feminilizadas, operáries em construção, etc… Por meio de justificativas hipócritas que promovem o avanço predatório de um sistema que se mantém colonial, o racismo persiste na estrutura social brasileira em diversos espaços e discursos, na economia, na política, nas instituições, nas subjetividades singulares e nas subjetividades coletivas.

Podemos dizer com a devida permissão poética que o termo raça é um dos fundamentos da modernidade colonial. Racismo muitas vezes manifestado em silêncios, em não ditos de um discurso hegemônico sem qualidades, numa lógica de dominação radicalizada na branquitude como um ideal único.

Kabengele Munanga, sujeito congolês-brasileiro, antropólogo, professor honoris causa do UFRJ diz que raça é: um termo carregado de ideologia, pois como todas as ideologias esconde uma coisa não proclamada: a relação de poder e de dominação. 

Em seu décimo oitavo seminário De um discurso que não fosse semblante, Lacan diz:  “Todas as formas de racismo, na medida em que um mais-de-gozar é perfeitamente suficiente para sustenta-las, são o que está na ordem do dia, são o que nos ameaça quanto aos próximos anos” (Lacan, 1971).

Com ares proféticos, termina o seminário do ano seguinte com essas palavras: Já que é preciso, de qualquer modo, não lhes pintar unicamente um futuro cor-de-rosa, saibam que o que vem aumentando, o que ainda não viu suas últimas consequências e que, por sua vez, se enraíza no corpo, na fraternidade do corpo, é o racismo. Vocês ainda não ouviram a última palavra a respeito dele. (Jacques Lacan, O seminário: livro 19: … ou pior, 1972)

Isso disse Lacan, sem ter conhecido o inominável que está na presidência do nosso sofrido brazil (em minúsculo com z) atualmente submetido a amos não nomeados.

Seguindo Lacan dizemos que as raças são efeito de discurso: a raça de que falo, não é a que sustenta uma antropologia que se diz física, ou baseada nos estudos do cérebro e mesmo na linguística, no estruturalismo. Continuo com Lacan, que diz: Ao utilizarem seus respectivos saberes considerados universalistas para classificar as raças humanas (…) produziram uma nova cervidão com “c” de cerveau (cérebro em francês).

Não mais a servidão a senhores, mas uma cervidão à ciência. (…) Ela se constitui pelo modo como se transmite, pela ordem de um discurso, os lugares simbólicos, aqueles com que se perpetua a raça dos mestres/senhores e igualmente dos escravizados, bem como a dos pedantes (…) Em outras palavras, trata-se do “racismo dos discursos em ação” (Lacan, O aturdito em Outros Escritos, 1972)

Esses efeitos de universalização que observamos no discurso científico, também ocorre na constituição psíquica do Eu. A imagem de si como corpo inteiro vela a sua própria divisão. Esta falsa unidade do Eu, este uni-verso, se edifica ao custo de uma parte de si expulsa como não Eu, comporta um gozo que é vivenciado pela unidade egoica como estranho e odiento. Esta porção excluída do Eu mantém a ilusão de uma suposta integridade harmônica, coloca os outros semelhantes  no lugar da encarnação do mal sendo alvos do ódio, do desprezo e da vontade de exterminar cada vez que os sujeites são dominados pelo discurso de ódio.

Quando algo do próprio gozo chega vindo do pequeno outro, é quando se põe em ação a rejeição mais fundamental do Eu ao diferente. Então, o que é rejeitado e segregado é o gozo do outro, mais precisamente é o que remete ao próprio modo de gozo inconsciente.

O discurso analítico é subversivo, subverte o discurso do amo, particulariza cada sujeito, cada qual é uma a uma em sua subjetividade. Ao invés de padronizar, globalizar ou adaptar como fazem algumas terapias da onda, a escuta analítica possibilita interpretar o discurso racista caso a caso.

O modo como sofremos é sempre singular, intransferível e não generalizável. As particularidades das diferentes manifestações subjetivas permanecem irredutíveis a vontade de síntese e homogeneização do Eu e do poder dominante.

O livro “O racismo e o negro no Brasil: questões para a psicanálise” de 2017, organizado por Noemi Kon psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae de São Paulo, nos convoca para repensar nossa prática. As autoras do livro descrevem as consequências do racismo como uma espécie de fenômeno paranóico, devido a invisibilização da população negra e o negacionismo sobre as questões raciais.

Esse racismo, que diz respeito a uma gramática social, e é também semântico, é compartilhado pelo próprio sujeito que porta traços negros, e que acaba por reproduzir essa mesma lógica de desqualificação da africanidade, enquanto tiver por referência central os significantes da branquitude, ainda que isso signifique algum grau de desprezo pelo próprio corpo e/ou história.

Num país em que o racismo é tão persistente quanto o seu silenciamento sistemático,                     é urgente enfrentarmos a segregação com a mesma coragem subversiva da psicanálise nos seus primórdios na era vitoriana, quando Freud ousou falar abertamente  sobre a sexualidade.

Clinicar bem posicionadas no discurso de uma psicanálise amefricana em construção, requer aceitar novos desafios. Ocorre-me alguns: abrir a escuta para falas estranhas, reconhecer em mim preconceitos racistas, valorizar outros saberes, fruir outras estéticas, trabalhar com ética temas incômodos, criar novos enlaces significantes, enfrentar os imprevistos, fruir novas viagens por mundos di-versos…

Para terminar esse texto e abrir a conversa, trouxe um poema do meu primeiro livro de poesia “Vestígios de Kairós” da coleção Adire, publicado pela Escola de Poesia e lançado na Feira do Livro em 2017. Esse poema está situado na sessão em homenagem ao Queermuseu: “A semana de arte degenerada que não terminou”. A exposição foi censurada e fechada pouco tempo depois da abertura pelo próprio banco que a financiou e a recebeu em sua sede, num dos prédios histórico mais importantes do centro de Porto Alegre, depois da manifestação de um pequeno grupo de fascistas e reclamações de alguns clientes.

Cenas de interior II – Adriana Varejão 1994

cenas de interior em superfície frágil

rasgos manchas bordas carcomidas

duplas e trios de mestiços brancos negros orientais

em deleite do sexo no intervalo da finitude

a pluralidade ofende os órgãos dos sentidos

daqueles acostumados apenas com o espelho.

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